domingo, 6 de março de 2016

Relacionamentos

Cala a bola! Só fala comigo depois que a gente chegar!

Um sábado quente, com corridas não lá muito empolgantes.

Visualizo que há uma enorme quantidade de carros na Vila Madalena. Resolvo partir para direções menos convencionais. Vou tentar fugir da concorrência.

Parto para a zona norte em um caminho pouco habitual. Vou pela Lapa. Não conheço quase nada e ao menos vou me familiarizando com a região. Mas o primeiro pedido só aparece perto da Barra Funda.
O primeiro casal demorou dez minutos para aparecer no ponto desejado. Entrou no carro falando o bom e velho “boa tarde” após serem provocados por mim. Não houve qualquer menção de desculpa pela demora. Não que uma desculpa faria o tempo ser reduzido, mas educação não paga o pão, mas ao menos alimenta a satisfação. E ainda é de graça!

33 graus aponta o termômetro do lado de fora. Dentro, agradáveis e refrescantes 21.

Volto para justamente de onde eu saí. Saio do shopping Eldorado e parto novamente rumo à zona norte. Novamente, por um caminho pouco ortodoxo. Vou por dentro das mansões dos Jardins.
O casal está a minha espera. Ele está com cara de poucos amigos. Ela, com uma cara simpática. O calor é republicano. Melhor oferecer água fresca, coca, coca zero, bala, chocolate Lindt... Não aceitam nada. Parto rumo aos Jardins.

Ela fala algo que é impossível de eu ouvir. A resposta é seca e grossa.

Cala a bola! Só fala comigo depois que a gente chegar!

Não sei até onde aquilo era sério. É impressionante como não há uma lógica nos relacionamentos. Se houvesse, claro que já teriam colocado à venda em formato de pílula, gotas e adesivos.

Há casais que estão juntos anos com ele (ou ela) é o mais ciumento e paranoico do mundo. Outros em que ambos têm TOC (e cada um à sua maneira!). Há ainda um outro que vive se chamando de “benzinho”, “amorzinho”, “mãe e pai”... Como eu poderia julgar e saber se aquele tipo de reação era uma brincadeira, uma forma de amor ou mais uma grosseria que ela suportava?

No primeiro momento eu queria mesmo era falar para ele para que se retirasse do carro. Não conseguia entender como poderia falar daquela forma com uma mulher.

Mas eu sou apenas um motorista. Motorista particular de aluguel. Se ela não reagiu, não respondeu e não chorou, então, deixa eu voltar a ser apenas um objeto entre o banco e o volante.

Segundos depois, ao entrar na avenida Europa, ela começa a rir sozinha.
Do que você está rindo?!

Silêncio.

Do que você está rindo?!!! O que tem de tão engraçado?

Ué, você não mandou eu calar a boca. Então, não tenho que falar nada!

Silêncio dobrado.

Hora de eu engolir o "chupa" e fazer cara de paisagem. E torcer para a viagem acabar logo.

Ao chegar ao hotel, ambos agradecem. Ela sai antes e com pernadas longas. Ele saiu miúdo, passadas curtas e olhando para ela se apagar no escuro do saguão.


O radar toca. Uma nova corrida! Acho que o dia ficou um pouco mais empolgante.

CURTA

Você é black? Mas o seu carro é prata. E o banco não é de couro.
Isso mesmo.
Mas eu, como consumidor, tenho o direito de exigir.

O rapaz com menos de 30 anos é calado pelos três outros amigos. Cara, não enche! Você está zoando, né? Ele tem coca, coca zero, Halls, Lindt?

Ah, tem coca zero?
Tenho.
Então agora tudo bem. Até esqueci da falta de couro. Vou te dar cinco estrelas!

Fechado, eu também!

Acredite: essa foi a corrida mais curta até o momento.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Dia 1 - Quem sou, para onde vou?

Por onde começar uma viagem? E quem serei eu? Falante? Quieto? Estilo sério? Polido? Informal? Piadista?
Passo por Santana, avenida Santos Dumont, Tiradentes. Acho que no Bom Retiro vai rolar uma chamada! Nada! OK, calma, calma, aumenta o som. A rádio está te ajudando e botando rock dos bons. Anhangabaú, 23 de Maio. Hospital Beneficência Portuguesa... Estou perto do Shopping Paulista e nada! Centro Cultural Vergueiro, Ibirapuera, agora vai! Nada! Cacete, será que eu fiz tudo certo com o aplicativo? Será que eu fiz as coisas direitinho? Enfim, segue o caminho porque você tem que ir fazer uma visita lá na zona sul de qualquer jeito mesmo. Então, respira, fica tranquilo. Se não fiz direito descobre quando chegar em casa!
Avenida Indianópolis, Moema, nada! Deve ser porque estou em uma avenida expressa, só pode...
Merda! Caralho! Putaquepariu! O celular está fazendo um barulho novo, um som de radar, tem até um símbolo de radar apitando. Putz! É minha primeira viagem! Deixa eu sair da via expressa, entrar à direita e ver exatamente como fazer com esse aplicativo. Paro o carro, descubro que o aplicativo é fácil de mexer. Pronto, agora é só seguir o Waze e partir. E torcer para que a corrida seja curta, fácil, tranquila e.... o telefone começa a tocar! Número que nunca vi na vida. Pronto, já fiz merda e o passageiro está ligando!
“Oi, Dani?”
“Isso, bom dia...” Eu esqueci de ver o nome dele, eu não sei o nome dele, que juvenil!!!
“É que não estou no endereço que apareceu para você.”
Pronto, agora o mundo quer me foder mesmo. Fodeu! Sério, em menos de meio segundo você consegue pensar isso. Ao menos, eu consigo.
“Estou no aeroporto no lugar onde vocês sempre me pegam.”
Como explicar que era a minha primeira corrida e eu não faço nem ideia do modo escondido de se pegar passageiros no aeroporto.
“Bom, é que não sei onde é. Nunca peguei ninguém aí.”
“Não?”
“Não, o senhor se importaria em explicar?”
Ele me explicou onde fica para escapar de taxistas nervosos.
Agora, alcanço ele, ajudo a botar as malas no porta-malas, ofereço bala, água e coca. Prefiro não dizer que é aquela não é somente a primeira corrida da manhã, do dia. Era a primeira da vida!
“Coca? Essa é nova! Normalmente é só água”
Sigo o padrão dos demais motoristas. Pergunto se posso seguir o waze e pergunto se o endereço é o mesmo cadastrado. Ele diz que sim. Leio o nome da rua. Vejo que não é muito perto, mas pelo nome sei que fica no bairro de Santa Cecília. Ufa, eu conheço... Não, péra! O nome da rua é o mesmo, mas fica em Santo André!
Sério, qual parte que o universo não entendeu que eu queria uma corrida simples, rápida e em um lugar conhecido? Não podia ser Moema? Não podia ser na avenida Indianópolis? Sabe quantas vezes eu fui para Santo André? Zero!
Mas o Waze tudo sabe! Uma bênção, senhor, ao criador do Waze, que está logo abaixo do inventor do ar condicionado. Porque se com o Waze você chega em qualquer lugar, com ar condicionado ligado você nem liga muito se não chegar.
A corrida dura imensos trinta minutos. 20 quilômetros intermináveis. Nada contra o passageiro, que se mostrou educado, conversou pouco e perto do local pediu para eu entrar uma rua antes daquela mostrada pela Waze. Ou seja, achei tudo muito bom. Mas eu, naquele momento, havia casado com a Sra. Tensão.
No destino, lembrei de finalizar a corrida assim que ele deixou o carro. Ajudei com as malas, agradeci, entrei no carro e me dei conta que eu realmente precisava mijar. Agora, o estômago percebera que não tinha mais volta, mas ele mandou mensagem via canal urinário. Mas antes de fazer xixi, deixa eu voltar para São Paulo.
Mas alguém lembrou de desligar o Uber?
O radar apitou de novo. E o pedido da corrida era dentro de Santo André! Putaquepariu! Por favor, que a cliente, a dona Margarida, peça para ir para São Paulo. Não, acredite, até esse momento eu não estava preocupado com ganhos. Só queria voltar para onde eu conhecesse um pouco.
Encontro com a dona Margarida que pede para ir ao shopping da cidade.
“Mas não é pela entrada principal, pode ser pela lateral”
Ah, claro. Não faço ideia nem o nome do shopping, nem qual é a entrada principal e muito menos a lateral.
“Posso seguir o Waze até um pedaço e a senhora me explica o caminho? Porque eu realmente não conheço nada por aqui”
Dona Margarida se mostra solícita ao quadrado. Pergunto se ela quer bala, água, coca. Ela aceita a água sem pestanejar. E posso dizer que valeu a pena essa água. Ela bebeu com uma vontade que deu gosto. Em dez segundos acabou com a garrafa de meio litro. Devolveu a garrafa para eu jogar no lixo.
Pronto, mais uma cliente satisfeita!
Agora é sério. Eu realmente preciso ir na zona sul (de São Paulo!) e fazer xixi. Mas não nessa ordem. Desligo o Uber pelo bem geral da nação. Dirigir com vontade de mijar é pior do que qualquer coisa.
Agora, onde? Nada como viajar com uma mulher que a cada 90 minutos precisa fazer xixi. Assim, você aprende a encontrar rapidamente Mcdonalds, Starbucks da vida. Mas quando se está de carro, é preciso achar também lugar para estacionar. Ah, obrigado aos Extras e Carrefoures, essas bênçãos nada divinas no meio do caminho!
Sem água acumulada, vamos ligar novamente o Uber. Para onde vou? Bem, vou em direção a minha casa. Se não pintar nada, parto para o almoço. Aeroporto, Moema, Ibirapuera... nada!
Centro Cultural Vergueiro, hospitais, centro, Anhangabaú e nada! Ops, lá vem o caralho do radar apitando na porra do celular.
Agora, é só torcer para eles estarem indo para a Zona Norte.
Chego no endereço e cadê o cliente?
“Aguarde o passageiro. Ele já foi comunicado”, diz a mensagem no meu celular. OK, ok, entendi. E não vou ligar para ele. É o que recomenda a Uber. Aguardo bem pouco e vem o novo passageiro. Agora acompanhado de três pessoas e uma cerveja na mão.
“Você gostaria que eu seguisse o Waze?”
“Não, o caminho eu sei. É depois da Faria Lima. Pega a 23, o túnel e depois de atravessar a Faria Lima eu te explico”
“Ótimo”
No caminho, o quarteto conversa entre eles. Tenho que lembrar de permanecer quieto. Estão no meu carro, mas a regra não é minha. Estou levando eles onde querem, mas eu só sou um robô com licença para dirigir. Preciso de lembrar de falar só quando for o desejo do cliente. Me seguro e consigo obter sucesso.
Mas o sonho de a corrida ser para a Zona Norte não só não foi atendido como fui para mais longe novamente. Tudo bem, ao menos os quatro foram educados, conversaram bastante e a corrida correu tranquila.
Então, parto para retornar para a Zona Norte. O Waze indica a JK. Resolvo ir pela 9 de Julho. E vem mais uma chamada. E mais uma vez espero educadamente o passageiro. E ele não vem sozinho novamente. Vem com mais três pessoas e quatro malas! Quatro! E das grandes.
“Eu pedi um carro grande”
“Posso tentar botar dentro do carro. Mas quantas pessoas irão no carro?”
“Só meu pai e minha mãe”
Ufa, então vai caber. Mas uma mala vai no banco da frente.
“Mas se o senhor quiser chamar um outro carro maior que eu aguardo”
“Não, pode ser esse mesmo”
Todos e tudo para dentro do carro. Posso seguir o Waze que parte em direção ao aeroporto de Congonhas.
A mãe do rapaz é de uma simpatia ímpar. Puxa assunto, pergunta o que faço, se trabalho muitas horas como Uber, se estou curtindo, o que achava das eleições americanas...
Era uma cilada. Eu caí nela, mas ao menos dei sorte. Respondi que torcia pela Hillary para só depois ver a besteira.
“Ops, sei que é um assunto delicado. Tinha que saber primeiro se vocês são democratas ou republicanos”
Ela ri, mas diz que é democrata. E ele? Ele não responde, mora faz tempo nos EUA, mas é carioca.
“Ah, então é Flameeeeengo”, eu digo. Sério, algumas vezes eu preciso aprender a calar a boca.
Ela dá risada. Ele dá um sorriso amarelo. Enfim, a corrida está longe de ser longa.
E fim do primeiro dia. Se uma viagem começa no aeroporto, ela termina no aeroporto.

Edição zero

Quem será o primeiro? Ou quem serão os primeiros? Vão usar o bagageiro?
Mas como, afinal, funciona esse aplicativo? Ela apita, sai gritando, falará comigo? E ele vai dar o caminho para eu chegar até o passageiro?
Por favor, a única coisa que eu peço é que seja uma corrida fácil e rápida. Nem que dure um quarteirão, que eu não ganhe nada. Só quero ver como funciona o aplicativo, só quero saber como eu vou me comportar como motorista.
Claro que eu já fui motoristas em inúmeras vezes. Mas sempre levando amigos, conhecidos, colegas de trabalho, dando carona para amigas... Já levei uma pessoa, duas e já enchi o carro com mais gente do que o permitido. Já comi dentro do carro, transei, caiu refrigerante, dormi,  babei! Mas agora levar estranhos e ainda ser pago para isso?
Espero que o carro corresponda. Ele está inteiro, eu sei, mas são muitas ansiedades ao mesmo tempo.
Então, está resolvido. Será nesse sábado, dia 20 de fevereiro. Vou aproveitar que tenho que entregar um pacote para uma amiga. Sairei da zona norte para a zona sul e ver no que dá.
Antes eu só preciso fazer o estômago entender que eu vou sair de casa de qualquer jeito. Cara, é o terceiro piriri na última hora. E para piorar, ainda veio o quarto e depois do banho. Uma das coisas mais irritantes é piriri depois do banho. Essas coisas tinham que ser proibidas por lei divina, não é possível que ninguém pensou nisso antes.
Até culpo a salada da noite anterior pelo serviço no banheiro, mas ao me dar contar sentado no buraco que aquilo não tem nada a ver com alface. Tem a ver com ansiedade, medo!
Então, levanta essa bunda (desculpa, essa foi literal!) e vai para a luta. Afinal, a ideia de entrar na Uber foi minha, a iniciativa foi minha. Então, não tem ninguém te cobrando para isso. Vai descobrir esse novo mundo, mas agora não mais como passageiro, como motorista. Não mais como a pedra, mas como a vidraça. Agora você estará sob julgamento seja lá quem for. E o estômago vai ter que entender que isso vai acontecer. Com ele querendo funcionar ou não!
Entro no carro, ligo o ar e paro no posto de gasolina. Compro água, uma coca e balas. Ao menos lembrei de dar ímãs com imagens de São Paulo feito pela minha mulher como brinde.
Então, preencho o que ainda falta, tento fazer uma foto digna para aparecer para o passageiro. Três tentativas e nenhuma agrada. O estômago resolver conversar comigo. Vou na quarta foto mesmo, finjo que não ouço o estômago, ligo o carro e #partiu!

A partir de agora eu sou oficialmente um Uber. Bem-vindo ao novo mundo! Você também estômago!